segunda-feira, outubro 29, 2007

No vazio…














Saiu de casa com aquela sensação de vazio no peito que tantas vezes sentira antes. Aparentemente não havia motivo nem ele saberia dizer porque se sentia tão triste.
A noite correra bem.
Um jantar bem preparado, uma saída agradável, o regresso pleno de desejos que, antecipadamente, sabia iam ser satisfeitos.

Enroscados no sofá, entretiveram-se com um filme que há muito queriam ver juntos. O chá ia sendo bebericado calma e longamente, em vez dos habituais Porto ou a velhíssima aguardente que guardavam para momentos como este.
Nos intervalos, que não gostavam de perder o enredo, comentavam a história, enquanto as carícias os mantinham próximos e prendiam os desejos ao ardor que adiavam consumir.

Ainda se ouvia a banda sonora, terminado o filme, já trocavam beijos, já as mãos se precipitavam para o interior da roupa, dos corpos, da alma.
Quando, cansados, adormeceram, ficara no ar um sentimento estranho. Não era nada. Nunca era nada. Era apenas a sensação de que algo ficara por dizer ou por fazer.

Saiu de casa e andou até ao carro. E andou, andou, à procura do momento em que a ternura se tinha esgueirado através da brisa entre o olhar de amor e o desalento que, sem se aperceber, se tinha instalado.


(Foto: Luís António Alves)

quinta-feira, outubro 25, 2007

Dos encontros…











Caro blogue,
Já há muito tempo que não falávamos, só nós os dois. Também é verdade que estamos frequentemente em contacto, por isso vamos sabendo de um pelo outro, não achas?
Mas hoje (enfim foi ontem mas a coisa passou-me por causa de alguns imbróglios), é um dia especial.
Há dois anos que me sirvo de ti para passar palavras. Sabes? Aquelas coisas que trazemos cá dentro e que nos consomem? Pois é. Dois anos.

Durante este tempo, umas vezes com maior, outras com menor frequência, temos recebido comentários giros, interessantes, maus, desadequados, pertinentes, idiotas, enfim, um pouco de tudo, como deve ser, como na vida. Sim, porque ao contrário do que muita gente pensa isto faz parte da vida. Se não, que andaria esta gente toda aqui a fazer?
Como sabes, estás longe de existir para me preencheres vazios, ou amaciares a solidão. Felizmente que existes porque me dás gozo. E isso é que importa. Mesmo.

Ao longo destes meses conhecemos alguma gente. Se valem a pena? Bem… eles há-os que sim e há os que nem por isso.
E conhecemos mesmo não foi? Quer dizer… tu não. Tu estás aqui e conheces personagens.
E foi giro? Nem sempre.
Mas o saldo é positivo. E para ti? Também?

Engraçado é quando lemos os comentários. E daquela vez em que acreditaram que eu estava para aí apaixonado? E daquela outra em que estava desesperado?
Tudo ficções, tudo construções. Eu sei que alguns blogues são espelho das suas personagens. Tu, tu és uma construção. Umas vezes próximo, outras, muitas, vezes longe, longe de seres eu. Nunca na totalidade.

E agora? Achas que nos aguentamos mais quanto tempo? Decidimos depois, não é?
Para já agradecemos à malta toda que aqui tem vindo, em especial os insistentes que, apesar da menor assiduidade, insistem em ir passando.
E aos outros, aos que nunca mais voltarão, porque se foram embora ou porque… porque sim…

Então até já ok?

Um abraço





(Foto:Pedro Moreira da Fonseca)

sexta-feira, outubro 19, 2007

Da vida real...

Constatei que, na net, os artigos que abordam assuntos do quotidiano têm poucos leitores ou, no mínimo, poucos comentários, a menos que contenham pormenores sórdidos, preferencialmente de natureza sexual. Nada a assinalar. Cada um lê o que lhe apetece e a mais não é obrigado.

Não resisto, porém, a contar a história, recente, deste amigo meu. Não porque seja extraordinária, mas exactamente porque é vulgar. Talvez demasiado longa para o blogue mas de quando em vez lá calha.

O Miguel, que é empresário de um ramo que vive, hoje, momentos difíceis vai-se casar. E com grande pompa. “É a primeira vez que me caso, por isso vai ser com tudo a que tenho direito”, diz ele. Nada de novo, claro. Haja dinheiro.

O Miguel, de quem tinha perdido o rasto até há uns meses, viveu uma relação de 15 anos, nada de matrimónio – por uma questão de alergia –, da qual tem uma filha. A relação acabou, não sei se de morte natural, ou se por causa da Silvana, a loira brasileira (e até bonita, e até simpática) que conheceu na net.
Ao fim de algum tempo, três anos, resolveram ambos que o melhor era ela vir mesmo, com filha e tudo, viver com ele. Estava tudo a correr muito bem, até trabalhavam juntos e tudo. De repente, conta ele, “descobri que afinal não sentia nada por ela. Em Maio achei que tinha de mudar a minha vida. Já não se passava nada.”

Agora vai casar-se com a Vanda. Rapariga bonita (o tipo escolhe-as a dedo, deve fazer casting), divorciada há tantos meses quantos os meses da criança de que é mãe. O papá achou que não era bem o que se pensava, essa coisa de ter miúdos com fraldas para mudar.

Ontem conheci a filha da Silvana. Achei curioso o trato de “pai, dás-me dinheiro para ir comprar um gelado?” e “Sabes? Já trato o João por mano. E a minha mãe não se importa que chame a Vanda de mãezinha. Por isso agora é mãezinha”, dizia ela.
O Miguel olhou para mim. “Que queres que faça?”, disse. O Miguel continua a pagar o apartamento onde elas vivem. Ao todo despende mais de 500 euros em renda, comida, educação de uma miúda que não lhe é nada, a não ser afectivamente. “Adoro a miúda mas não sei quanto tempo vou aguentar isto”, lamenta-se. A Silvana está a trabalhar a meio-tempo, e recentemente. Faz umas fotos num colégio, passa a ferro, enfim, vive de expedientes.

A Vanda é a tal. São sempre, digo eu. “Sabes o que é teres a hipótese de ter aquilo que sempre quiseste?”, pergunta. “E o miúdo é um espectáculo”. E mostra-o numa miscelânea de fotos no desktop, uma montagem da filha, a primeira e única (?).
Acredito que seja. Há sempre alguém que nos toca de tal forma que é impossível voltar atrás.

O Miguel vai-se casar. E tem uma preocupação. É que vai perder o estatuto de solteiro. Este e outros contornos da história do Miguel pouco importam.

Eu, por mim, fui espectador de um fenómeno que confirma que a genética é cada vez mais relativa, e pouco importante, no que toca aos afectos entre adultos e crianças.
Aparentemente os legisladores ainda não deram por isso.



Digo eu...


(Foto: Pilar Mendes Dias)

terça-feira, outubro 09, 2007

Lambe-te…

Queres mel?
Pois então lambuza-te neste doce
Que é a paixão e o amor.
Queres açúcar?
Pois não te acanhes
Serve-te desta baba
Que me escorre das entranhas.

Apetece-te um doce?
Queres que me esforce?
Pois cozinhei para ti
Uma iguaria sem rimas
Sem pudor algum
Sem desejo nenhum
Espreguiço-me, apenas, aqui.


(Foto: Paulo César)

segunda-feira, outubro 08, 2007

Boa gente…













Ele era um bom homem. Daquelas pessoas que nos habituamos saudar no café, com quem gostamos de conversar.

Gostava de rir. Desde miúdo que se divertia com partidas inocentes, daquelas que irritam um adulto dos mais santos, mas das quais a única consequência é essa mesmo. Mas também se assim não fosse não seriam partidas.
Depois, casado e com filhos, e um cão, mantinha a sua postura divertida. Sério, procurava ser coerente. Nem sempre o conseguia, mas também quem consegue?

Um dia apareceu triste. Sem motivo aparente tinha saído de casa. Sem motivo aparente deixara o “quentinho do lar” como costumava dizer.
E essa tristeza não mais o abandonou.

Um dia, vi a notícia no jornal. Tinha sido preso.
No meio de toda a confusão que, afinal, a sua vida era, começara a não suportar o emprego.
A indiferença pelo seu esforço profissional, a dificuldade em gerir um orçamento que não esticava – esticava graças aos cartões de crédito… que têm de ser pagos – acabaram por empurrá-lo para o pior que lhe poderia ter acontecido.

De facto, alguns sinais exteriores vinham indicando que este indivíduo estava a fenecer aos poucos. O ódio que o vinha consumindo era presságio de algo de muito radical e mau.
Ninguém acreditava que aquele homem um dia entrasse pelo escritório e, de arma em riste, descarregasse o carregador da pistola – ninguém imaginava que ele tivesse aquele objecto – no administrador da empresa onde trabalhava há anos.

Afinal, o homem que todos conhecíamos como apaziguador de iras, vivia num mundo que ninguém conhecia, nem sonhava sequer.

Agora trava a batalha mais dura que alguma vez quis enfrentar. A dor de se ter rendido à maior das paixões, tão próxima do amor, como o céu está do mar.



(Foto: Isabel Silva – Tormenta)


quinta-feira, outubro 04, 2007

Tua música…















Levanto-me, cansado, depois de horas e horas ao piano.
Olho-te, meio tapada pelos lençóis, e apetece-me deixar os dedos percorrerem-te. Apetece-me fazer-te gemer como geme a guitarra esgotando a paciência aos vizinhos.
Mas não. Não agora.
Agora apenas vim ver-te para saber com que notas vou acabar esta canção.

(Foto: fatamorgana.romanesca.com)