quinta-feira, abril 19, 2007

Descolagem

Lamentavelmente perco a esperança de me desvanecer nos braços da paixão.
Conheço-me bem.
Sinto a alma descolar-se pelo picotado da consciência. Ou será a consciência pelo picotado da alma…?
De todo o modo, permaneço ausente. Vagamente recordo a brisa do amor e da tranquilidade.
De quando em vez abro os braços à esperança de que a luz reencontre o caminho da minha casa.
Enfastio-me.
E comigo, também tu. Esperas pelo momento em que te abrace incondicionalmente, como se fora um príncipe encantado, de conto infantil e maravilhoso.
Mas não!
Não quero ser o resto de um mundo onde apenas sombras sorriem porque nada temem.
Eu temo o tempo. O tempo que tenho e o que já se esgotou.
Perdi a viagem algures a meio, quando saí para comprar cigarros.
Tonto, sei-o agora. Tonto, porque a troco de um efémero prazer, deixei fugir o prazer mais doce que se esconde na inocência de um beijo longo.

A tranquilidade que possuo custa-me o dobro do prazer de ser tranquilo.
O melhor é partir de vez. Deixar esta melancolia que se prolonga para além do suportável.
Sofro. Porque incapaz de esquecer os longos cabelos loiros que um dia possuí e que se perderam em quimeras prateadas. Ali se desfizeram em pó, ali se consumiram em desejos mal resolvidos.
Hahahaha… Rio-me.
Rio-me porque apenas me resta rir.
Rio-me porque as lágrimas doem mais, muito mais.

Ao mesmo tempo que me desconstruo, entendo a subtileza do primeiro mor, aquele que um dia imaginei eterno.
Depois, num ápice, alimentei as quimeras de um sonho dourado.
De costas para o abismo, lancei-me na vertigem.
Ah… o momento foi mal escolhido. Fiquei aprisionado nesse voo alucinado.
Agora, preso no limbo, sinto os espinhos romperem-me a pele, o sangue jorrar por entre dores sem cura.
Levanto-me, em cada dia, com esta sensação de bebedeira nocturna. A complexidade disto é a consciência de cada segundo que passa e que será por sua vez o último de cada vez.
O passado torna-se presente, como que saído de uma fotografia mal tirada, descorada, desfocada. E os beijos, hoje, têm, simultaneamente, o valor doce e acre, quente e frio de vida incompleta.
Revejo-me em cada fraqueza que recordo. Fortaleço-me em cada incoerência, como se me alimentasse de comida fora de prazo.

Vejo-te deitada no meu medo. Desfaleço na tua incerteza e adormeço na minha inconstância.
Oiço as palavras que roubaram o sossego aos meus sonhos, mesmo se me dizes que nada mais importa. A tua noite, intranquila, revela angústias vividas noutros tempos, noutras vidas.
Ambos sabemos que roubámos estas noites a outras noites que já não nos pertencem. Ou nunca pertenceram.
Através dos teus murmúrios oiço a voz de uma plano rasurado. E o resto que, se visível, se revela, é um sinal da marca do sangue que um dia manchou um lençol, uma água, um desejo. Marca que ressurge em dias cinzentos…

Essas memórias, que colidem com as minhas, marcam a impossível quietude. Roubam a tranquilidade ao sono, antes calmo, apaziguador.
Marcados pela dor e pela desilusão, caminhamos lado a lado nesta “ideia” de modernidade onde tudo é possível, onde tudo cabe.
Abandono-te à noite. Os dados caem sobre o pano verde e riscam as probabilidades da insistência inútil. Vagamente o abraço aperta a dor e lambe a angústia.
Falas-me de planos incondicionais. Confesso-te milagres impossíveis, de reviravoltas impossíveis.
Esqueço-me de grandes causas. Porque a minha causa é mais importante, mais urgente.
É que sem amor não vivo em paz.
A constância da felicidade é-me indispensável.
Podes viver sem água?
Não, claro. Também eu não posso viver sem o fogo do amor que se renova em cada toque, em cada troca de olhares.
Ah, a luz dos olhares que se amam é combustível, é alimento é a vida.

Já não quero ter planos.
Não entendes? Não quero sobreviver a mais desilusões.
Cansei-me da vida fácil, porque a facilidade tem um preço maior que a maior das dificuldades.
É por isso que te interrogo. Porque as promessas não cumpridas são como pedaços de vidro lascado.

Já vi a morte tão perto. Uma, duas vezes, talvez. Mesmo assim, percebi que o medo é inútil. Pelo menos é o que penso. Talvez porque de tão rápida não pouco tenha sentido o seu gelo.
Um dia, no definitivo dia, talvez peça pela vida. Agora, porque tudo é superficial, o medo é substituído pela ansiedade e pela tristeza.
Olho em volta. Não estou só. Sinto os olhares cúmplices dos que, como eu, aguardam uma esperança que já não vem. São os suspiros de quem se deixa abater.
Não eu!
Eu ainda não!!
Apenas miro cada movimento em torno de uma escura e fria incerteza.
É tempo de partir. É escasso o tempo e a vida não espera por nós. Vou deixar-te. Partimos ambos em direcções opostas, como se apenas nos tivéssemos cruzado por instantes.

É o regresso à eternidade que nunca se esgota.

(Fotos: Rui Pedro Benevites, A. Brito, Rui Vale de Sousa, SophieThouvenin, Ant)